
No meu canto

Foi mesmo mágica. O coração dela batia tão forte, que o ensaio daquela banda nas ladeiras do Pelô não conseguiu ocultar tanto barulho, e a sua respiração era tão ofegante que levantava mais poeira que todas as pessoas que sambavam no Terreiro de Jesus. Jesus: levantou o rosto para o céu de olhos fechados e, numa oração tímida e tão forte, pedia aquele menino de cabelo nagô para ela. Aquele menino que era mais lindo que o Deus de Ébano do Ilê Aiyê, isso se existisse um Deus de Ébano no Ilê — ela ousara criar este posto para ele dentro de si. O que ela queria mesmo era que ele fosse o Deus de Ébano da sua vida —. Mas aquele menino era cortejado demais! Era cobiçado por todas as meninas que subiam e desciam, repetidas vezes, aquelas ladeiras históricas do Pelourinho, e por todas as turistas e por todas... E ele era encantador demais! Tão encantador que ela não ousara sonhar-se ao lado dele, mas este era o seu sonho de todos os dias, de todas as horas. Imaginava-se no ensaio do Olodum de braços dados com aquele menino, e quando as meninas caçadoras se aproximassem dele, ele olharia no fundo dos olhos dela e diria: “Já encontrei a preta da minha vida”. Era tudo o que ela mais queria na vida e era tudo o que ela mais fingia não querer para não sofrer e sofria tanto — Ela podia até achar que enganava a todos, mas como enganar a si mesma, se aquele amor queimava no seu peito mais que o sol do verão de Salvador? E ela nem percebia o quanto se diminuía, ela só queria saber de fingir que não sentia aquele amor, ela achava que era um amor impossível — achava não, tinha quase certeza, digo quase porque sempre existe uma pontinha de esperança escondida dentro de nós, mesmo que a gente negue —. Mas aquele menino tinha um sorriso bonito demais! Quando ele sorria tudo ao seu redor iluminava-se. Queria tê-lo por perto quando faltasse luz, nem precisaria de candeeiro, nem de velas nem nada, o seu sorriso clareava mais que o farol da Barra — pensava. Mas aquele menino tinha um gingado bonito demais! Quando ele dançava todas paravam pra ver e ele ficava no centro de todas as rodas de samba, sem saber que não saía do centro do coração daquela menina faceira, despercebida de todos e muito menos do menino de cabelo nagô.
As terças da benção recomeçaram, ela se arrumou e se pintou e quando ia, mais uma vez, repetir em frente ao espelho que aquele menino era demais para ela, ela fixou os olhos no espelho, olhou no fundo dos olhos dele e olhou e olhou e viu muito mais do que a sua face com um semblante entristecido, a menina viu-se por dentro e ela estava num cantinho sentada, toda encolhida e cabisbaixa, abraçada nas pernas e apertando os joelhos contra o peito. Então, tomou um impulso e deu as mãos àquela menina despercebida e ela levantou-se esplendorosa. Neste momento, a mágica aconteceu pela segunda vez, a mesma mágica que aconteceu quando vira aquele menino de cabelo nagô pela primeira vez, só que desta vez, apaixonara-se por si e aceitara o seu amor irrevogável. E uma luz fortíssima irradiou dela, tão forte que o espelho brilhava como se tivesse estrelas faiscantes por dentro. E ela disse ao espelho: — Aquele menino... Aquele menino é o seu amor, é o preto da sua vida e ele não é demais pra você, porque nada é demais diante disso, menina! E ela subiu aquelas ladeiras renovada e mais leve que um fio de lã na ventania e brilhava e brilhava tanto! Foi como se ela tivesse acordado de um sono muito profundo e que a melhor parte do sonho ainda fosse acontecer. E a menina faceira, até então despercebida, atraía olhares dos quatro cantos do Pelô — só podia ser aquele sorriso que ela não tirava do rosto por nada, estava feliz por ter saído de um casulo que criara para si mesma. E, quando ela andava toda altiva e cintilante, avistou o menino de cabelo nagô, o menino que era dono de todos os seus sonhos e devaneios, e ele vinha andando em sua direção — ela teve que travar a garganta nesta hora, temia que o seu coração saísse pela boca. E, como se o destino quisesse pregar uma peça nela, quando estava bem perto do menino, o salto do seu sapato quebrou — foi o susto do amor, mas andar de salto nas ladeiras do Pelô requer habilidades de equilibrista, eu bem sei disso, porque sempre ando e tropeço por lá. E ela abaixou toda roxa de vergonha e, antes que se levantasse, o menino abaixou também e passou a mão levemente na sua face, que estava mais quente que o dendê do tabuleiro da baiana; a baiana que assistia a tudo aquilo segurando os olhos para não piscar e quase queima os acarajés da vez — às vezes é num piscar de olhos que perdemos os momentos mais bonitos.
E, de repente, todos os olhares do Pelô voltaram-se para aqueles dois e o menino de cabelo nagô sentiu uma coisa por dentro que parecia azia, mas que era o amor despertando dentro dele como fogo, era a mágica acontecendo nele e era a primeira vez que ele sentia aquilo e era tão bom! Os dois ficaram horas perdidos naquele olhar de encontro. Algumas pessoas disseram que ouviram harpas tocarem durante todo o tempo, outras poderiam jurar que eram sons de tambores como ecos. E ele disse: “— Você gostaria de curtir o Olodum de braços dados comigo?”. Preciso mesmo dizer a resposta?! Ah! E o sapato? Pra quê? Ela flutuava... Os dois flutuavam juntos!
[E curtiram o Olodum de braços dados e a vida toda. E foi eterno e mágico todos os dias... Ela era a preta da vida dele. Era tanto amor que não passava despercebido.]
E beijaram-se a primeira vez sob este som:
[Olodum – Vem meu amor – Silvio/ Guio]
Selo que ganhei da Lívia. Selo que ganhei da Paulinha e selos que ganhei da Dielma. Aqui. Obrigada pelo carinho, queridas!