

Se fosse apenas mais um dia, talvez ela suportasse... Depois tudo voltaria ao normal: os seus sonhos, a sua vontade intensa de viver, o seu sorriso que iluminava tudo ao seu redor e que poderia voar novamente, sem medo de cortarem as suas asas, pois, se isso acontecesse, teria leveza o bastante para flutuar e contemplar a beleza das coisas, como sempre fez.
Acontece que, mais um dia fechava as suas portas e outro nascia trazendo consigo a mesma promessa do dia anterior. E ela não queria mais viver de promessas, porque promessas não preenchem lacunas — a sua vida estava cheia delas, de promessas e de lacunas e ela também estava cheia disso.
E então, ela costurou as suas asas quebradas, respirou fundo, fechou os olhos e se jogou... Ela estava numa altura absurda, mas não recuou em nenhum momento — ela já tinha adiado isso fazia tempo — e nem teve medo do que encontraria pela frente em seu caminho, um caminho sem promessas, dali em diante, mas com suavidade espalhada por todos os cantos. Ela só queria viver uma realidade tão bela quanto os seus mais doces sonhos. Não, ela não era nenhuma boba alienada, muito menos hipócrita, tinha os pés no chão, a cabeça dela é que voava muito... Era uma sonhadora! Ela sabia que lhe era permitido sonhar — a realidade é sempre melhor assim — e isso ninguém jamais conseguiu tirar dela.
E, como ela imaginou, ela flutuou de tão leve que se sentiu... E, no dia seguinte, ela não precisou ficar vivendo cada dia como uma promessa não cumprida, um amanhã mais parecido com um ontem. Ela só precisou viver! Sem esperas, desfrutando das coisas simples e fundamentais, como alguém que acabara de sair de um deserto e está com muita sede, só que a sede dela era outra, uma sede insaciável, era a sede de viver — há muito ela não vivia, mas essa sede ela sempre teve. E ela seguiu... Preenchendo as suas lacunas como o seu coração mandava...
[Do jeitinho que ela sempre havia se prometido.]
Aquilo vai, progressivamente, pintando o meu mundo em preto e branco, e, de repente, onde quer que eu olhe, as cores vão sumindo, sumindo... Quando eu avisto um pouquinho de cor, logo aquela nuvem alcança e apaga tudo.
Os meus dias vão perdendo a graça, o sentido e a beleza, pra onde quer que eu olhe nada me anima, ficou tudo desbotado.
Mas aí chegam as minhas latinhas de tinta, uma de cada cor, trazidas pelas pessoas especiais da minha vida: família, amigos, aquelas pessoas que sempre estão por perto para enfeitar os meus dias e têm sempre uma palavra, que às vezes, mesmo sendo duras, me trazem de volta ao mundo.
As latinhas de tinta vêm carregadas de amor, carinho, afeto, cuidado, atenção, das coisas mais bonitas e essenciais.
E quando olho para o céu pra agradecer a Deus, percebo que ele já ganhou um tom azul clarinho, que vai ficando cada vez mais azul, azul... E um raio em tons dourado, alaranjado e lilás vai tomando conta do cenário. — Sim, é o sol, mais amarelo e brilhante do que nunca.
Todas as cores vão voltando e com mais intensidade, com mais encanto. E um lindo arco-íris se forma.
E no final do arco-íris tem muito mais do que um pote de ouro.
Tem o essencial: as coisas que colorem a minha vida.
[Para todos que amo, minhas latinhas de tinta]
[Eça de Queirós. Em: O Primo Basílo]
[A palavra certa muda tudo, faz tanta diferença, salva, resgata lá do fundo do abismo e traz à vida novamente. É impressionante o poder de uma palavra! Aquelas palavrinhas mágicas ditas na hora certa. Aquelas que precisamos tanto ouvir. Aquelas palavras que afagam o coração e que o mesmo sente, imediatamente, a presença ou a falta.]
Logo vejo algumas piscando, imagino que elas estão querendo chamar a minha atenção, desabafar, talvez sobre uma desilusão amorosa, a falta que sentem de alguém, ou quem sabe, me pedirem ajuda. A estas chamo de carentes, estrelas carentes.
As que caem eu não chamo de cadentes, chamo de solitárias e penso que se atiraram lá do céu para procurar no mar um refúgio — as estrelas solitárias viram estrelas-do-mar e depois que elas se encontram de verdade voltam a brilhar no céu.
Têm algumas estrelas que não brilham, são foscas, quase apagadas e ficam bem afastadas das outras, parecem que não querem ser notadas ou que se escondem de alguma coisa, de algum erro que cometeram e não tiveram coragem de pedir perdão, são as estrelas amarguradas. Será que elas ainda vão brilhar um dia? — penso. Difícil alguém brilhar com o coração desse jeito.
Fico um tempo ali tentando criar uma situação pra fazer com que elas aliviem os seus coraçõezinhos aflitos, e então, vou catando cada uma delas e coloco perto das estrelas-guias — as estrelas-guias são as mais iluminadas do céu, aquelas que direcionam e abrem os caminhos para todas as outras estrelas. Sei que elas não se importarão em passar um pouquinho do seu brilho. E em poucos segundos, já posso notar uma leve cintilância ao redor das amarguradas. Nesta fase de metamorfose, elas passam a se chamar agridoce.
Sempre vejo três estrelinhas juntas, imagino o quanto elas são felizes, nunca estão sozinhas, umas ajudam as outras. São as estrelas amigas — quem tem amigos sempre é mais feliz, em qualquer lugar que esteja.
E assim as horas vão passando e cada estrela que eu vejo vai ganhando um personagem e não há uma vilã ali, todas são protagonistas, cada uma tem um sentido especial e representam com maestria os seus papéis no roteiro que criei baseado em mim. E elas seguem guiando a minha noite, como um clarão no breu...
De repente, todos os refletores do céu se acendem de vez, são as minhas estrelinhas fazendo um espetáculo, como se percebessem as sombras tentando tomar conta do meu cenário e fizessem reverência para me iluminar e o resultado é um efeito especial de beleza ímpar. E as cortinas não se fecham no final.
Quando percebo, estou rindo! As estrelas sempre me fazem rir e me acalmam.
[Quem disse que não é possível tocar nas estrelas? Basta fechar os olhos, ficar na pontinha dos pés e imaginar, imaginar...]
Os meus olhos têm as cores do mar
Do fogo e do ar
Da noite e do chão
Meus olhares vivem a se transformar
São assim como eu
Feito camaleão
Ficam vivos, mortos, sorridentes
Os meus olhos não mentem
Eles sentem, eles são
E eles falam mais que palavras
Quem olhar bem no fundo
Verá meu coração
As esperanças não morrem, podem ficar um pouco empoeiradas com as peças que a vida prega. E elas podem até criar crostas a partir de camadas e mais camadas de desilusão e desafeto.
Às vezes representam tão bem que até acreditamos que elas se foram de verdade, mas as esperanças nunca se vão e nunca se apagam, estão sempre lá, incólumes.
Por isso, vez em quando, pego água com sabão, misturo com anis e hortelã e me lavo por dentro. Porque as esperanças são à prova d’água.
E saem esperanças novinhas em folha. Porque as esperanças não criam rugas.
[E brotam do improvável.]